28.5.12

Infantário da Solum

Carlos Encarnação cedeu gratuitamente o infantário público da Solum a  entidade privada de quem era conselheiro e cujos interesses defendia.
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Carlos Encarnação cedeu infantário a fundação de que era conselheiro

Carlos Encarnação integrava um órgão social da Fundação Bissaya Barreto (FBB) quando, no cargo de presidente da Câmara de Coimbra, em 2009, decidiu ceder-lhe um infantário, por 40 anos, sem concurso.
A câmara decidiu emprestar os 1753 metros quadrados do Jardim de Infância n.º 1 de Coimbra, na abastada zona da Solum, através de um contrato de comodato válido por 40 anos e renovável por períodos de 20, para que a FBB ali criasse uma creche. Assinaram-no, a 2 de Outubro de 2009, os líderes da autarquia, Carlos Encarnação (PSD), e da fundação, Patrícia Nascimento.
O contrato ainda não entrou em vigor, mas é "para cumprir", adianta o atual presidente da câmara, Barbosa de Melo (PSD), que, no entanto, se recusa a comentar o facto de o seu antecessor ter intervindo decisivamente na cedência do infantário a uma entidade privada a que estava formalmente ligado.
O contrato foi viabilizado em sessão camarária, a 17 de Agosto de 2009, na qual Encarnação apresentou aos seus pares a respetiva proposta (alegadamente feita à autarquia pela FBB), argumentou a seu favor e votou-a. A ata do Executivo indica que o autarca omitiu que estava ligado à FBB enquanto membro do seu Grande Conselho - "órgão consultivo, apoiando o Conselho de Administração no desempenho das suas funções", segundo os estatutos da fundação.
"Tratando-se de um órgão consultivo, talvez não fosse absolutamente obrigatório que o fizesse, mas, pela delicadeza da decisão, teria sido correto fazê-lo", critica Gouveia Monteiro, então vereador da CDU mas com pelouro e boas relações com Encarnação. Considera a questão discutível do ponto de vista estritamente jurídico, mas clara no plano ético.
Questionado pelo JN, Carlos Encarnação responde que não estava impedido, como autarca, de intervir na deliberação sobre o contrato de comodato, porque o Grande Conselho é "um órgão consultivo, não tem poder decisivo".
"Uma aberração jurídica"  

A referida ata revela que a ausência de concurso público foi o ponto mais controverso da proposta, aprovada com os votos favoráveis de Encarnação e outros quatro membros da coligação PSD/CDS/PPM. Teve o voto contra de Gouveia Monteiro e a abstenção de quatro do PS e um do PSD, Pina Prata, então desavindo com Encarnação: "É uma aberração jurídica, este contrato de comodato (...). Porquê a FBB e porque não outras entidades?", questionou Pina Prata.
Encarnação justificou-se afirmando ter havido casos anteriores em que "os terrenos foram concursados", mas também exemplos contrários, em freguesias periféricas da cidade, Ceira e Eiras, onde a construção de creches foi precedida de cedência de terreno ou comodato. "O apoio tem dependido da capacidade das várias IPSS", sustentou.
Contrato anulável  

O Estatuto dos Eleitos Locais impõe-lhes, no artigo 4.º, o dever de "não intervir em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa". Uma norma equivalente à que fixa os "impedimentos dos titulares de órgãos ou agentes da administração pública", no artigo 44.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
Um de seis magistrados que aceitaram comentar o caso do infantário da Solum, sob anonimato, considera que a dupla qualidade de Carlos Encarnação - autarca e membro do Grande Conselho da Fundação Bissaya Barreto (GC/FBB) - não causou vício no contrato de comodato. Para esse juiz conselheiro, o GC, como órgão consultivo, não representa a fundação. Ainda assim, diz que o autarca não poderia apreciar o contrato, se o tivesse defendido, antes, na pele de conselheiro...
Os outros magistrados (um juiz conselheiro e um desembargador, um procurador-geral adjunto e dois procuradores) defendem o contrário. Desvalorizam o carácter consultivo do GC, por os seus membros serem nomeados para defender os interesses da FBB, e concluem que o autarca deveria ter-se abstido de participar na deliberação camarária, para mais não precedida de concurso.
Deste ponto de vista, a deliberação ofendeu o artigo 4.º do Estatuto dos Eleitos Locais e o 44.º do CPA, constituindo ato "anulável". Mas, assim, só seria revogável por um tribunal, se o Ministério Público ou um cidadão o tivessem requerido nos prazos de um ano ou de três meses (já os atos "nulos" são revogáveis a todo o tempo).
83 crianças sem vagas  

A Câmara de Coimbra cedeu o Infantário da Solum à Fundação Bissaya Barreto, para a sua transformação em creche, com um argumento infundado - pelo menos do ponto de vista da oferta pública. Sem apresentar qualquer estudo, defendeu que o pré-escolar tinha, "naquele local, uma cobertura de 100%" (ao lado há um infantário João de Deus), pelo que bastaria transferir as suas duas turmas (50 crianças) para o novo centro escolar então projectado para outro ponto da Solum; ao nível das creches é que a cobertura não chegava a 40%, contrapôs.
No início deste ano lectivo, o antigo infantário já não abriu portas e o novo centro escolar foi inaugurado, com capacidade para 12 turmas do 1º ciclo e duas do pré-escolar. Ora, neste nível de ensino, ficaram de fora 83 das 99 crianças candidatas, de três a seis anos de idade. "Uma das que ficou de fora foi o meu filho", conta ao JN o presidente do Agrupamento de Escolas Eugénio de Castro, António Couceiro, que integra o novo centro escolar. Viria a encontrar vaga num infantário público, mas numa zona da cidade que o obriga a fazer deslocações automóveis em hora de ponta. "Dá cabo da minha vida", desabafa o dirigente do agrupamento.
Próximo do PSD e companheiro da directora Regional de Educação do Centro, Couceiro prevê que, no próximo ano lectivo, "ainda vai ser pior". "Temos falta de espaço", protesta, "cem por cento contra" a cedência do infantário à FBB. Defende que aquele deveria manter-se em funcionamento, mas a câmara nunca lhe pediu opinião: "Só tivemos conhecimento da situação pelos jornais".

Nelson Morais/JN