26.6.12

Fogueiras de S. João



Com a devida vénia, transcreve-se um artigo de Eduardo Proença-Mamede, publicado hoje no Diário de Coimbra. Transporta-nos para a realidade da música e das tradições populares de Coimbra de há, pelos menos, cinquenta anos atrás. Interessante, uma referência à Fonte de S. João, na Arregaça, que não é mais nem menos do que a nossa Fonte do Castanheiro.
________________________________________________________________

Fogueiras de S. João
De todas as festas e festejos populares do passado, Coimbra era famosa pelas suas Fogueiras de S. João. Santo António, nascido como Fernão de Bulhões em Lisboa, mesmo de fronte da velha Sé, tinha o seu expoente máximo na capital. O S. Pedro comemora-se, em regra, em terras à beira mar. Hoje, o São João é quase um apanágio do Porto, onde o alho-pôrro e as gambiarras-balões lançadas no ar marcaram a diferença e mantiveram a tradição.
A partir da época liberal, com a paz e uma certa prosperidade reinante no país, as tradições populares retomaram um novo fôlego e um novo ânimo. Coimbra, pátria do Padre José Maurício, autor de tanta modinha publicada na década de 1790, no célebre “Jornal das Modinhas”, terra que viu nascer José António Carlos Seixas, filho do organista da Sé Velha, não ficou atrás na composição de músicas populares que os ranchos cantavam noite fora até romarem em grupo à fonte de S. João, para os lados da Arregaça. César Magliano e o maestro José Elyseu (morador na Sé Velha e de uma família de artistas em todos os campos!) são os últimos de uma longa série de que ainda não foi feita história. Esperemos que a exposição de “Os Salatinas”, que estará patente na Casa da Cultura, em Outubro próximo, relembrará mais nomes que se evidenciaram.
Há hoje a tendência grosseira e estúpida de apartar a música e determinar que o Fado-Canção de Coimbra é dos estudantes e não do Povo Coimbrão, como se a música fosse apanágio de uma qualquer corporação ou classe social. Nada de mais errado! No passado, as capas e batinas misturavam-se com os xailes de tricanas e nos pavilhões que se erguiam para o São João, tanto subiam estudantes como futricas para cantar fados e canções para dançar, tanto o futrica organizava uma serenata à sua amada, como um qualquer estudante pinga-amor. O poeta Camilo Pessanha e Afonso Costa, político da 1.ª República, eram produtos de ligações sem casamento entre tricanas e estudantes!
No século XIX e XX, os estudantes chegavam a Coimbra bastante novos e, quando muito, os instrumentos que tinham aprendido era o piano ou o bandolim. A célebre família Paredes, do qual o mais conhecido foi Carlos Paredes eram bengaleiros das Escadas de Quebra-Costas, que também consertavam guarda-chuvas. Nas barbearias eram os barbeiros que tangiam guitarras e violas de modo exímio e eram eles que não só ensinavam aos estudantes, como os acompanhavam nas serenatas que pretendiam fazer. Basta recordar José Fonseca (o famoso Zé Trego!) ou Flávio Rodrigues, já memorado em várias manifestações. Numa casa de média e baixa burguesia Coimbrã era frequente um irmão tocar viola e uma irmã bandolim, quando não era o próprio elemento feminino que tangia a guitarra enquanto o irmão ou irmãos cantavam. Assim era a tradição!
As festas de São João tinham ainda mais esplendor e brilho quando reunidas nos anos pares com as Festas da Rainha Santa, como é o caso este ano. Chegavam a vir romeiros de Penacova e de Soure para Coimbra pelo São João e, sendo o tempo de feição, acamparem em tendas improvisadas nos areais do Mondego (quando os havia!) e só abalarem depois da procissão de domingo para as suas terras. São João e Rainha Santa, a santificada D.ª Isabel de Aragão desde 1516, cumpriam assim o milagre de reunir mais pessoas que qualquer comício político dos nossos dias e, sem dúvida, eram motivo de muito maior interesse que discursos fátuos ou um rol de mentiras gritados ao povo por gente cujos escrúpulos deixa muito a desejar.
E é melhor ficar por aqui. A devoção e o respeito pela Santa Rainha, que casou aos 13 anos em Trancoso com o Rei de Portugal, merece mesmo o silêncio e a meditação que lhe são devidas.

Eduardo Proença-Mamede