20.9.11

Zeca Afonso



Autobiografia 
As minhas primeiras veleidades de cantor surgiram quando andava no 6º ano do liceu. As noites passava-as em deambulações secretas pela cidade, acompanhado de meia-dúzia de meliantes da minha idade, amantes inconsequentes da noite. Com uma guitarra e uma viola fazíamos a festa. Estávamos ainda longe do hieratismo triunfal das serenatas na Sé Velha diante de multidões atentas e respeitosas. O velho Flávio Rodrigues continuava a ser o «Mestre», venerado por um pequeno discipulado de guitarristas e acompanhadores que com ele se reuniam numa pequena casa do bairro de Celas onde acabou os seus dias minado por uma doença fatal. 
Do convívio com esse homem torturado ficou-me a recordação de uma instabilidade impotente e resignada ao peso das terríveis limitações materiais que acompanharam até ao fim o lento processo destruidor do nosso companheiro. 
Seguiu-se um período de promoção fadística em que acabaram por me colocar no palanque das estrelas de primeira grandeza. Outros acompanhadores (peritos e sisudos) e outras oportunidades em viagens promovidas pela Tuna e pelo Orfeon. São dessa época as minhas idas a África e as tournées através da província. Recordo-me de ter participado na inauguração de uma auto-maca, para os bombeiros voluntários de Pádua e de, por diversas vezes, ter dormido ao relento nos «pinhais do rei». 
Nestas andanças percorri as estradas do país esticando o polegar a quem passava sobre rodas, ou, mais afortunadamente, pagando com fados e canções a hospitalidade com que me recebiam em suas casas, pobres, ricos e fidalgos arruinados. 
Por motivos económicos fui forçado a deixar Coimbra antes de concluído o curso e a leccionar em colégios particulares. O contacto concreto com a situação profissional no sentido mais amplo foi-me pouco a pouco endurecendo. 
Em Coimbra as coisas mudavam lentamente. Novas remessas de estudantes, menos pitorescos mas mais conscientes do que os do meu tempo, mais devotados aos problemas que fatalmente surgiam num meio sufocado por tradição, as mais das vezes inútil, intentam, à semelhança do que já outras gerações haviam feito, romper declaradamente com o bafio, pôr de parte a quinquilharia passadista do velho romantismo do «Penedo», realizar ao nível associativo uma modernização da vida académica dentro dos limites a que os forçava o estreito meio geográfico em que viviam. 
Lá longe no Algarve, chegavam-me os ecos destes acontecimentos. Embora em doses insignificantes, e já um pouco tarde, tentei acertar o passo por esse ritmo coordenador de energias há muito desencadeadas, mas sem o sentido de oportunidade de que careciam para se converterem em acção positiva e fértil. 
Nessas pequenas descobertas adquiri a noção do tempo perdido, abominei a cidade onde a minha alegria de viver inutilmente estiolara ouvindo «tanger os bordões da viola», calcorreando ruas, frequentando as casas de prego, bebendo bicas nos cafés da baixa ou escutando, mais por imposição do que por prazer, as arengas dos teóricos da bola.
Nalgumas andanças por Lisboa tomei esporádico contacto com outros meios estudantis. Rapazes novos, dinâmicos, combativos, de pés bem assentes na terra, com os quais, embora de uma forma efémera, muito me foi dado a aprender. Ganhei amizades, rejuvenesci e sobretudo senti na carne a urgência de alguns problemas que até então mal tinham afectado a minha maneira de ser. 
Numa disposição de espírito muito diferente da que me levara a procurar fora de Coimbra uma largueza de horizontes que a cidade me negara, renovei um pouco o meu conhecimento dos homens e dos lugares. O Algarve foi por então a minha pátria adoptiva. Nos sapais da ria de Faro e nos areias do sotavento algarvio passava eu as melhores horas do dia junto do barco simbólico que o António Barahona salvara do esquecimento e da decomposição. 
Só muito acidentalmente cantei. Em casamentos, baptizados, convívios efémeros, que sei eu? Como de resto sempre o tinha feito. As baladas surgiram como um produto anónino desse conjunto de circunstâncias, mas, também, com o tempo, sempre um interlocutor forçoso contava comigo. Mais do que simples forma musical vagamente lúdica ou combativa definiam uma atmosfera pré-existente nas coisas presentes e passadas. Nada mais do que um folclore de segunda ordem pronto a servir. 
O Rui Pato ajudou-me nas situações de maior responsabilidade perante públicos mais exigentes ou nas gravações. Comecei por cantar o que me vinha à cabeça, nas praias do sul ou em curtas deambulações por terras de província onde ampliei, fora do ambiente universitário, as minhas experiências mais duradoiras.
A mais recente pausa da minha vida veio cortar de forma imprevista as esperanças dum recomeçar.
Sem saber como, apesar das inevitáveis demoras burocráticas achei-me em Lourenço Marques com um lugar de professor. Mais umas baladas (as últimas) e uma transferência para a Beira. Novo lapso e uma última oportunidade que me veio através do TAB (Teatro dos Amadores da Beira). Cardoso dos Santos empenhava-se num prazo mínimo de tempo em preparar a encenação de “A excepção e a regra” de Bertold Brecht. Faltava musicar e adaptar as canções que figuravam na tradução de Francisco Rebêlo. Assim fiz. Depois disto a mudez ou a decadência. Não sei bem. 
Cidade da Beira 1967